Instrumento é levado para escolas, concertos e blocos de carnaval
Não faz mais de 15 anos. Marcos Nimrichter ia se apresentar ao piano com uma orquestra cujo nome não vem ao caso. Nos ensaios, um amigo falou dele para outro músico: “Olha só: o Nimrichter, além de pianista, é um grande acordeonista.” O músico, então, virou-se para Marcos: “Você toca acordeom? Sanfona? Mas esse instrumento ainda existe?”
— Pior que ele estava certo. Na época, era como se a sanfona não existisse — diz Marcos, hoje com 45 anos.
Oito baixos. Hermeto Pascoal e a sanfona que ganhou quando tinha 8 anos.
- Pedro Kirilos / Agência O Globo
Sucesso de público com Luiz Gonzaga e de crítica graças a nomes como Sivuca e Dominguinhos, o instrumento andava meio esquecido. Fosse sanfona, acordeom ou gaita (todos sinônimos), ficava restrito a festas juninas e aos últimos formandos do forró universitário. Hoje, a história é outra.
Uma nova geração de músicos, do Rio e de outros estados, está tirando a sanfona do gueto regionalista: tem acordeom no rock, no jazz e no carnaval de rua. A procura pelo instrumento cresceu nas lojas, quem faz manutenção está cheio de serviço e as fábricas italianas estão abarrotadas de encomendas brasileiras.
Além das festas de São João (13º e 14º de todo sanfoneiro), o calendário agora é povoado por eventos dedicados à pluralidade do instrumento. Exemplo: entre 14 e 18 de julho, em Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), ocorre o III Festival Internacional da Sanfona. O evento foi criado por Celso Carvalho e Targino Gondim, famoso pela canção “Esperando na janela”, do filme “Eu tu eles”. Para Targino, o conceito é quebrar preconceitos:
— Trazemos músicos do mundo todo para mostrar uma sanfona universal. Temos que abrir a cabeça do povo.
Targino reforça: o instrumento, surgido na Alemanha no século XIX, é complexo. Num modelo profissional, além de suportar 15 quilos nas costas, o sanfoneiro precisa harmonizar a “respiração” do fole, 41 teclas (tocadas com a mão direita, que fazem a melodia da música) e 120 baixos (os botões da esquerda, que ajudam no ritmo e na harmonia).
— Fica essa história que sanfona é coisa de matuto... — lamenta Targino.
Batismo. Targino Gondim faz questão de ter
seu nome em sua sanfona. - Custodio Coimbra / Agência O Globo
A associação entre sanfona e matutice pode ser creditada à bossa nova, que explodiu no final dos anos 1950 jogando um raio cafonizador em tudo que não se encaixava no esquema banquinho-e-violão. Até então, o Brasil vivia uma “infernal mania nacional pelo acordeom (...) Hoje parece difícil de acreditar, mas vivia-se sob o império daquele instrumento”, escreveu o parcial Ruy Castro em “Chega de Saudade — A história e as histórias da Bossa Nova”. O ensino do instrumento era quase obrigatório entre jovens de classe média. Mário Mascarenhas, dominava o movimento: fabricava gaitas em Caxias do Sul (RS), mantinha uma rede de academias pelo Brasil e, ao fim de cada ano, promovia um concerto no Teatro Municipal. Em 1958, a batida mágica de João Gilberto levou milhares do fole do acordeom para os acordes do violão.
— A bossa nova trouxe uma mistura de samba com jazz que contrastava com a estridência da sanfona e o vozeirão de Luiz Gonzaga — justifica Marcelo Caldi, acordeonista com formação acadêmica em música que já lançou discos onde explora os limites do instrumento no tango e no choro.
Desde o ano passado, Caldi tem um projeto educacional chamado “Sanfona — É cultura popular nas escolas”, onde apresenta o instrumento.
— Muitos não conhecem — diz Caldi. — O efeito da bossa nova foi forte: Sivuca teve que tocar violão para sobreviver.
PROFESSOR. Marcelo Caldi promove tem um projeto onde
apresenta a sanfona para estudantes - Custodio Coimbra / Agência O Globo
Alheio a modismos, o multi-instrumentista Hermeto Pascoal seguiu tocando tudo, inclusive acordeom, seu primeiro instrumento. Aos 79 anos, o alagoano ainda faz miséria com a Hering de oito baixos que ganhou aos 8 — foi um presente por aprender sozinho a tocar a gaita do pai.
— Um dia, minha mãe avisou que o pai ia voltar mais cedo da roça. Fiquei me cagando de medo, desculpe a expressão. Mas ele só queria me ver tocar. Gostou tanto que vendeu uma rês (gado) para me comprar um instrumento melhor, esse daqui — diz Hermeto, acariciando a sanfona. — Três meses depois, eu e meu irmão José Neto estávamos nos apresentando: éramos Os Galegos do Pascoal.
De volta ao Jabour, subúrbio do Rio, após uma temporada em Curitiba, o músico celebra a nova safra de sanfoneiros. E defende a pluralidade do instrumento:
— Pelo sucesso do Luiz Gonzaga, ele ficou rotulado. Parece que só serve para tocar um tipo de música. Mas no acordeom você pode tocar tudo, até percussão — afirma ele, e passa a batucar na santona.
Herança. Hermeto Pascoal e sua sanfona de 8 baixos,
em seu apartamento em Bangu. - Pedro Kirilos / Agência O Globo
Até em Juazeiro, no interior da Bahia, a sanfona ganhou rótulo de “brega’’. No início dos anos 1980, quando Targino Gondim quis deixar o teclado após ver o pai tocar “Asa branca” no acordeom, enfrentou oposição dentro de casa.
— Meus irmãos não entendiam. Quando tocava para as visitas, ouvia: “Mas o que é isso, um menino tão bonito, tão inteligente, tocando sanfona.’’ Mas nunca me arrependi da troca.
Targino ia aparecer em “Eu tu eles”, só que o diretor Andrucha Waddington achou que ele não tinha cara de sanfoneiro (“acho que ele queria alguém mais rústico”). Mas “Esperando na janela” entrou, na voz de Gilberto Gil — um daqueles meninos que começaram tocando acordeom nos idos dos anos 1950.
— Sempre gostei muito do som que sai da sanfona, daquele jeito de tocar comprimindo o ar que entra lá dentro, experimentar as infinitas variações, harmonias... — lembra Gil, que está em turnê com Caetano Veloso pela Europa. — Gonzaga foi o primeiro ídolo da minha infância, quem me despertou para a música, a ter vontade de estudar, aprender... Por causa dele meus pais me deram um acordeom quando eu tinha uns 9 anos, que guardo até hoje.
Quando Luiz Gonzaga morreu, em 1989, Gonzaguinha entregou uma das sanfonas do pai para o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin — o instrumento Todeschini, cheio de adesivos e enfeites, hoje parte do acervo o Instituto Cultural Cravo Albin, na Urca. Gonzaguinha, que não seguiu os passos sanfoneiros de Gonzagão, faleceu num acidente de carro em 1991, mesmo ano em que o niteroiense Marcos Nimrichter resolveu levar sanfona a sério.
ERUDITO E POPULAR. O pianista Marcos Nimrichter
se apaixonou pela sanfona. - Custodio Coimbra / Agência O Globo
— Para mim, acordeom ainda era sinônimo de forró, até que eu comecei a estudar o instrumento por conta própria e um mundo novo se abriu. Eu vinha do piano, e o movimento do fole e a sustentação prolongada da nota representavam uma maneira nova de se expressar — lembra Nimrichter, que gravou o “Concerto para acordeom, orquestra e cordas”, de Radamés Gnatalli. — Hoje eu acho que Dominguinhos está no nível dos clássicos que estudei na faculdade de Música.
Assim como vários acordeonistas cariocas, Nimrichter comprou seu primeiro instrumento com o lendário Romeo Longo, imigrante italiano que consertava, tunava e vendia sanfonas. O negócio foi assumido por seu filho Rafael, 39 anos, que segue atendendo a antiga e a nova clientela.
— Para você ter uma ideia, só pego serviço a partir de janeiro. O mercado aqueceu demais. Quando comecei, ajudando meu pai, diziam que sanfona era “coisa de paraíba”. Hoje, cada vez mais aparece jovem querendo tocar, evangélico que usa para som gospel, até funkeiro — diz Rafael, que adverte: — Cuidado no conserto: tem muito curioso assassinando os instrumentos.
Nas lojas de instrumentos do Centro do Rio e na Rua Teodoro Sampaio, em São Paulo, os acordeons voltaram às vitrines. As fábricas nacionais, como a Lettice, de Campina Grande (PB), estão cheias de encomendas. Muitos sanfoneiros brasileiros vão até a Itália para testar e comprar por até R$ 30 mil os modelos das marcas Scandalli e Giuliette, as mais conceituadas no mercado. E todos que querem eletrificar a sua vão ao mesmo endereço da Zona Leste paulistana: a casa de Manoel Jeneci, inventor do captador de áudio para sanfona.
Seu Manoel está com a agenda lotada. Sempre curioso por assuntos eletroeletrônicos, do tipo que montava e desmontava o rádio da mãe quando era pequeno, ele antes experimentava com teclados, que vendia de loja em loja. O demonstrador do produto era seu filho, Marcelo Jeneci.
POP. Marcelo Janeci e sua sanfona na sua casa, em São Paulo.
- Fernando Donasci / Agência O Globo
Um dos novos expoentes da MPB, Marcelo, 33 anos, surgiu justamente tocando sanfona, instrumento que ele via o pai fuçar, mas nunca tinha se arriscado. Até receber uma proposta que considerou irrecusável: uma turnê com Chico César pela Europa.
— Menti que sabia tocar. Nem tinha sanfona: Dominguinhos, amigo da família, me emprestou uma. Aprendi por desejo e necessidade. Graças aos companheiros de banda, deu tudo certo.
Jeneci está enfurnado nas gravações do novo disco de Arnaldo Antunes. No mundo pop, não é só o ex-Titã que vê a sanfona com bons ouvidos. O instrumento está nos álbuns e shows de estrelas latinas como Julieta Venegas e Jorge Drexler, nomões como Bruce Springsteen e Foo Fighters e alternativos como Arcade Fire e Beirut.
Mesmo com esse pedigree roqueiro, o acordeom do carioca Kiko Horta era malvisto nas bandas dos amigos:
— Essa galera perguntava: “Você vai tocar Jimi Hendrix com esse instrumento de velho?” Poxa, quer algo mais rock’n’roll que o Luiz Gonzaga tocando “Vira e mexe” com aquela roupa de couro? Quer mais virtuose que o Dominguinhos? Mas ninguém percebia o tamanho desses caras.
Filho de Luiz Paulo Horta, que fazia críticas de música erudita no GLOBO, Kiko, 38 anos, já conta com um currículo variado, que vai de concertos na Sala Cecília Meireles ao carnaval de rua — seu acordeom anima os foliões no bloco Cordão do Boitatá.
— Hoje se configurou um novo cenário para a sanfona, firme e diferente — diz Kiko, que prepara para este ano um álbum instrumental e autoral que vai se chamar “Sanfona carioca’’.
PODE? Kiko Horta levava sanfona para tocar Hendrix
com amigos - Custódio Coimbra / Agência O Globo
Numa cena em que também se destacam Chico Chagas, Bebê Kramer e Toninho Ferraguti, o “sanfoneiro-educador” Marcelo Caldi acredita que ainda há barreiras a serem quebradas:
— Todo mundo tem que conhecer sanfona, a gente precisa passar pelas nossas raízes. A união do erudito com o popular é o que vai salvar a música brasileira.
Para Jeneci, o som da sanfona varia como o sotaque do sanfoneiro, mas com um sentimento em comum:
— É um instrumento com um sopro muito bacana, muito bonito, que ilustra uma certa melancolia. O timbre dele, no nosso imaginário coletivo, tem a ver com saudade. Os lamentos sertanejos, os aboios escancaram isso. Mas, no fundo, tem também deleite, uma satisfação de quem vive a vida todinha.
Sanfoneira. Lucy Alves começou a
tocar com a família - YK / YK
O XOTE DAS MENINAS
Podem ser os 15 quilos do instrumento. Pode ser por que, apesar do sucesso de Adelaide Chiozzo, não surgiram sanfoneiras no nível de gênios como Gonzagão e Dominguinhos. O fato é que o acordeom ainda é visto como um instrumento masculino.
No cenário atual, quem se destaca é Lucy Alves, que ficou famosa no reality show “The voice Brasil”, da TV Globo.
— A sanfona sempre foi protagonista no seio de minha família. Meu bisavô, meus tios já tocavam esse instrumento — diz Lucy, que emenda um show atrás do outro nesta época do ano. — Terminei me interessando também, na verdade me apaixonando por esse instrumento tão completo.Eu e várias outras mulheres estamos desmistificando tudo isso e provando que também conseguimos segurar a sanfona no peito, e tocar tão bem quanto os homens.
Outro nome que desponta é Adriana Sanchez. Seu último disco, “Salve Luiz — Tributo a Luiz Gonzaga”, tem participação de Zeca Baleiro. E há, claro, sanfoneiras gringas: no III Festival Internacional da Sanfona, um dos nomes mais esperados é a romena Ksenija Sidorova.
fonte: Centro de Memória do Bixiga Acervo @edisonmariotti
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